Crônica: 1981 Lendo 1984

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🏠Parnaíba (PI)

Eu tinha 17 anos quando li o livro 1984, de George Orwell, pela primeira vez. Morava em Santarém, no Pará, e trabalhava no extinto Banco Real. Era um tempo em que a juventude parecia maior do que o próprio corpo: a vida ainda era promessa, e eu, como muitos da minha idade, carregava no espírito a pressa de crescer e, ao mesmo tempo, o receio de não estar preparado para o mundo.

O Banco me consumia boa parte do tempo. As manhãs começavam cedo, com o som das velhas máquinas autenticadoras Burroughs misturado ao bate-bate dos carimbos e ao vai e vem dos clientes. Havia o cheiro característico de papel-moeda, ligeiramente impregnado de suor humano, que se confundia com o ar abafado da agência. Eu usava camisa social de manga comprida mesmo debaixo do sol escaldante de Santarém, porque assim exigia a formalidade do ambiente. E, entre uma tarefa e outra, pensava no rumo que minha vida tomaria.

Santarém, naquela época, era uma cidade que vivia entre o ritmo lento do interior e as promessas de crescimento. O rio Tapajós era a moldura do cotidiano, vasto e sereno, mas ao mesmo tempo imponente. Eu costumava olhar suas águas ao final do expediente, como quem busca na imensidão algum tipo de resposta. Nas ruas, o comércio pulsava em ritmo próprio, e as noites eram silenciosas, interrompidas apenas pelos rádios que tocavam músicas internacionais da década de 1980 ou pelo dedilhar do meu velho violão, presente do estimado amigo Reginaldo.

Foi nesse cenário que o livro de George Orwell caiu em minhas mãos. Peguei-o emprestado, creio que de um colega de trabalho, numa edição já amarelada, com capa simples, sem atrativos. Lembro-me de abrir aquelas páginas depois de um dia exaustivo no Banco, deitado numa poltrona que ficava na tesouraria do estabelecimento, e de me sentir invadido por um desconforto. O que Orwell descrevia - um mundo de teletelas, vigilância constante, manipulação da memória - me parecia ao mesmo tempo exagerado e perturbador. Era como se o autor tivesse esticado uma sombra sobre o futuro, um aviso que eu ainda não estava preparado para decifrar.


Naquele momento da minha vida, tudo aquilo parecia distante. Eu caminhava entre meu quarto – em um casebre alugado - e o Banco, entre as responsabilidades de jovem adulto e as descobertas da vida, sem imaginar que o romance que lia como ficção pudesse, um dia, atravessar as páginas do livro e se insinuar na realidade. Mas o tempo, que se encarrega de colocar cada coisa em seu devido lugar, mostrou-me que Orwell talvez não estivesse apenas criando uma história, mas apontando para o que sempre esteve adormecido na condição humana.

Hoje, quando penso naquela leitura, percebo como os sinais que me pareciam improváveis se tornaram comuns. Não precisamos mais das teletelas fixadas nas paredes, como no romance. Nós mesmos carregamos nossas telas no bolso, prontas a registrar cada gesto, cada passo, cada distração. Se antes o controle era imposto à força, agora se apresenta como conveniência, embrulhado em eficiência e facilidade. E o mais curioso - ou assustador - é que aceitamos isso de bom grado.

O personagem Winston Smith, que no livro luta para preservar a própria memória em meio a tantas versões fabricadas, continua a me acompanhar. Entendo melhor sua angústia. Hoje, vivemos cercados de notícias que se contradizem, narrativas que se reescrevem de acordo com os interesses dos “donos do Poder” e lembranças apagadas pelo excesso de versões. O Ministério da Verdade deixou de ser apenas um órgão fictício: espalhou-se em discursos, algoritmos, telas e vozes.

Às vezes me pego imaginando aquele rapaz de 19 anos, de camisa social amassada, sentado na poltrona velha da tesouraria com um livro aberto nas mãos. Ele não tinha consciência de que Orwell falava também do seu futuro. Percebia apenas o incômodo de uma narrativa que parecia mais um pesadelo do que um aviso. Mas agora, olhando em retrospectiva, vejo que aquele desconforto foi uma espécie de semente: plantada no quarto simples e regada pelo silêncio.

O tempo transforma a leitura. 1984 deixou de ser apenas um livro sombrio que li na juventude para se tornar um espelho. Não um espelho que mostra a face, mas que revela a fragilidade da nossa liberdade e a facilidade com que nos acostumamos à vigilância. A pergunta que Orwell deixou, e que ainda ecoa dentro de mim, continua atual: o que é mais perigoso - ser vigiado sem perceber ou ser vigiado e não se importar?

E penso que tudo começou em 1981, quando, sem saber nada - e ainda hoje sei pouco - fui morar só, longe da família, buscando ser alguém na vida. A busca não terminou. Continuo nela.

Por Walter Fontenele | Portalphb

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