Governo celebra “fim da fome”, mas especialistas alertam para distorção de dados
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📷Imagem Ilustrativa © Reprodução |
Comparação entre números da pandemia e estatísticas recentes levanta questionamentos sobre honestidade na comunicação oficial.
O anúncio de que o Brasil deixou o Mapa da Fome da ONU foi recebido com festa pelo governo federal. Em evento com ministros, lideranças de movimentos sociais e forte apelo simbólico, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmou que “ninguém mais vai passar fome neste país”. A declaração foi acompanhada por publicações oficiais que comparavam os atuais índices de subnutrição com os 33,1 milhões de brasileiros em situação de fome em 2022, durante o governo Bolsonaro.
Mas a comparação levantou críticas por parte de pesquisadores e analistas de políticas públicas. O número de 33,1 milhões, usado como contraste, é oriundo de uma pesquisa realizada pela Rede PENSSAN em plena pandemia de COVID-19, entre novembro de 2021 e abril de 2022. A metodologia é diferente da usada pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), que calcula a subnutrição com base em médias trianuais e dados agregados de disponibilidade de alimentos e consumo calórico.
“A pesquisa da PENSSAN capturou um momento crítico do país, quando o desemprego, a inflação e o fim do auxílio emergencial afetaram drasticamente o acesso da população à alimentação”, explica a socióloga Carla Nunes, especialista em segurança alimentar. “Comparar esse número com os dados da FAO de 2022 a 2024, que já refletem um período de recuperação econômica, é metodologicamente incorreto”.
A Rede PENSSAN utiliza a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA), aplicada em domicílios e baseada em percepções dos moradores sobre a disponibilidade de alimentos. Já a FAO adota indicadores técnicos que incluem estatísticas sobre produção agrícola, renda per capita e ingestão calórica. Além disso, o dado usado pela ONU como critério para retirar o país do Mapa da Fome é uma média dos anos de 2022, 2023 e 2024 — o que inclui parte significativa do período anterior ao atual governo.
O governo, no entanto, preferiu reforçar a narrativa de superação, com declarações de ministros e peças publicitárias que sugerem uma reversão drástica da insegurança alimentar desde 2023. Para especialistas, esse tipo de comunicação pode induzir o público ao erro.
“Há uma simplificação do debate”, afirma o economista Paulo Júnior, pesquisador da área de políticas sociais. “Não se pode dizer que um problema estrutural como a fome foi resolvido em dois anos, ainda mais sem levar em conta que parte da melhora já estava em curso antes da atual gestão”.
Dados da PNAD Contínua, do IBGE, mostram que a recuperação do emprego e da renda já vinha ocorrendo a partir do segundo semestre de 2021. O antigo programa Auxílio Brasil, embora criticado por seu desenho, teve impacto direto na redução da pobreza extrema em 2022. Esses fatores também contribuíram para os indicadores atuais, segundo analistas.
A FAO, em seu relatório publicado neste mês, destaca que o Brasil atingiu menos de 2,5% de prevalência de subnutrição entre 2022 e 2024. Isso o retira da lista de países em situação crítica. Mas a própria agência reconhece que a insegurança alimentar moderada e leve ainda afeta milhões de brasileiros, e que a situação no Norte e Nordeste permanece preocupante.
No meio do embate político, a fome segue como um problema real para parcelas da população, ainda que os índices tenham melhorado. A disputa agora se dá no campo simbólico: quem “tirou” o Brasil do Mapa da Fome? A resposta, para os especialistas, exige mais cautela do que slogans de campanha permitem.
Por David Agape (A Investigação)
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