Série Jesus Histórico: A Construção Teológica do Nascimento de Jesus em Belém: Uma Comparação Crítica

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🏠Parnaíba (PI)

Artigo Científico de Walter Fontenele (Antropólogo - UESPI) baseado em textos canônicos e referências bibliográficas de antropólogos, historiadores e arqueólogos do Brasil e da Europa.

RESUMO

O presente artigo analisa de forma critica os relatos sobre o nascimento de Jesus nos evangelhos Sinópticos e textos de autores do Século I da era cristã, com o objetivo de avaliar as diferentes tradições que apontam Belém e Nazaré como possíveis locais do nascimento de Jesus. A partir de uma abordagem exploratória e qualitativa, com base em pesquisas históricas e bibliográficas de estudiosos especializados na temática, investiga-se a hipótese de que a associação com Belém possa representar uma construção teológica destinada a vinculá-lo Jesus à linhagem davídica, conforme as expectativas das profecias messiânicas do período. Ao mesmo tempo, considera-se a plausibilidade histórica de Nazaré como local real de nascimento, uma vez que escavações arqueológicas modernas confirmaram a existência da vila no século I, reforçando sua viabilidade como cenário original da infância de Jesus, segundo indicam análises textuais e contextuais da Palestina da época. O estudo não pretende encerrar o debate, mas apresentar as evidências e interpretações disponíveis, respeitando a diversidade de perspectivas existentes entre os pesquisadores.

Palavras-chave: Jesus histórico; Belém; Nazaré; evangelhos.

1. INTRODUÇÃO

A reconstrução da figura histórica de Jesus de Nazaré, entendido como um homem inserido no cenário político, social e religioso da Palestina do século I, constitui um dos principais desafios enfrentados pela pesquisa contemporânea. Isso se deve, sobretudo, à natureza das fontes disponíveis, que, em sua maioria, pertencem à tradição cristã primitiva e foram elaboradas com finalidades teológicas. Os evangelhos canônicos, por exemplo, priorizam a proclamação da fé na ressurreição e na identidade messiânica de Jesus, incorporando elementos sobrenaturais, expectativas escatológicas e releituras de profecias do Antigo Testamento, o que torna mais complexa a distinção entre dados históricos e construções doutrinárias (CHEVITARESE, 2010).

A escassez de fontes confiáveis e externas ao cristianismo limita severamente a possibilidade de se escrever uma biografia tradicional de Jesus. Autores como Flávio Josefo (Antiguidades Judaicas) e Públio Cornélio Tácito (Anais) fazem menções breves e problemáticas, frequentemente suspeitas de interpolações ou baseadas em informações indiretas, o que reduz seu valor como testemunhos históricos (Crossan, 1994).

Diante disso, pesquisadores empregam critérios da crítica textual, como os da múltipla atestação e da dissimilaridade, na tentativa de identificar elementos com alguma credibilidade histórica em meio às tradições acumuladas. Soma-se a isso um dilema epistemológico: a tensão entre a análise crítica e a força do imaginário religioso que ainda envolve a figura de Jesus, inclusive nos meios acadêmicos. Como observa Crossan (1994), “não é possível chegar ao Jesus histórico sem desmontar o Cristo teológico, ao menos provisoriamente” (CROSSAN, 1994, p. 29).

A pesquisa sobre o Jesus histórico exige rigor metodológico e disposição para lidar com ambiguidades, contradições e lacunas. Mais do que reunir dados, trata-se de um esforço hermenêutico que pressupõe o distanciamento de pressupostos dogmáticos e a reconstrução crítica do ambiente histórico, linguístico e social em que Jesus viveu. Nesse sentido, Chevitarese (2010) esclarece que “é preciso devolver Jesus ao seu mundo, não para desmitificá-lo, mas para compreendê-lo de modo mais pleno e humano” (CHEVITARESE, 2010, p. 41).


Trata-se de um trabalho interpretativo, baseado em fragmentos e indícios. O desafio consiste em manter um olhar crítico sem perder de vista como a imagem de Jesus foi sendo ressignificada ao longo dos séculos. A tensão entre o Cristo da fé e o Jesus da história pode se tornar, portanto, uma via legítima de aprofundamento. Reconhecendo as limitações das fontes e os contextos teológicos em que foram produzidas, é possível captar aspectos significativos da trajetória e da mensagem de um pregador judeu que marcou profundamente a história da humanidade.

A metodologia adotada é exploratória, de natureza qualitativa, baseada em fontes secundárias: livros, artigos, teses e dissertações. A pesquisa parte de obras de historiadores e teólogos com longa atuação na área, como André Chevitarese, John Dominic Crossan, Linda Woodhead, dentre outros. O recorte cronológico vai de 73 (AEC) - provável nascimento de Herodes, o Grande, peça central para compreender o contexto político do nascimento de Jesus - até cerca de 150 (DEC) -, momento em que o cristianismo começa a se institucionalizar e a figura de Jesus passa por reformulações teológicas, como mostram os escritos patrísticos. O objetivo é situar Jesus em seu tempo e acompanhar a transformação de sua imagem nos primeiros textos cristãos.

O artigo está dividido em três capítulos:

- O primeiro apresenta a introdução e a metodologia utilizada;

- O segundo discute as narrativas do nascimento de Jesus em Lucas, Mateus, João, Marcos e Paulo expondo as divergências, quanto ao local de nascimento de Jesus;

- O terceiro e último traz as considerações finais.

2. DO NASCIMENTO DE JESUS

2.1. Os Evangelhos De Lucas e Mateus

O Evangelho de Mateus, tradicionalmente atribuído ao apóstolo de Jesus, é considerado por boa parte de pesquisadores contemporâneos como uma obra anônima, composta entre os anos 80 e 90 (DEC), provavelmente em uma comunidade judaico-cristã da Síria ou Palestina. O autor do Evangelho demonstra domínio da tradição judaica, repleto de citações do Antigo Testamento, e busca apresentar Jesus como o novo Moisés. A dependência literária de Mateus em relação ao Evangelho de Marcos, bem como o uso de uma fonte hipotética comum (“Quelle") e material próprio, indica que o texto foi cuidadosamente elaborado a partir de diversas tradições orais e escrito (CHEVITARESE, 2010). Para Brown (1997), sua redação posterior à destruição do Templo de Jerusalém, em 70 (DEC), é sugerida pelas alusões à catástrofe e pela preocupação com temas eclesiológicos e a identidade cristã frente ao judaísmo rabínico emergente.

Já o Evangelho de Lucas, também anônimo e escrito em grego Koiné (Grego Comum), é atribuído pela tradição cristã a Lucas, companheiro de Paulo, embora não haja consenso acadêmico que sustente essa autoria. A maioria dos estudiosos data sua composição entre 80 e 95 (DEC), a partir de evidências internas como a dependência de Marcos, o uso da Fonte (“Quelle”) e uma grande quantidade de material exclusivo que enfatiza a misericórdia, os marginalizados e a universalidade da salvação. Lucas escreve com objetivo claro de organizar uma narrativa ordenada para um leitor grego chamado Teófilo. Teófilo significa “amigo de Deus”, não havendo consenso de que se trata de uma pessoa real ou uma simbologia para todos aqueles que amam Deus (LUZ, 1991).

A obra de Lucas apresenta uma teologia e um retrato mais sensível das mulheres e de pessoas desprovidas de riquezas, revelando a preocupação do autor com a expansão do cristianismo, além dos limites da tradição judaica (CROSSAN, 1994). O mesmo autor de Lucas é geralmente reconhecido como redator do livro de Atos dos Apóstolos, formando um díptico literário que articula o nascimento de Jesus com a expansão missionária da Igreja primitiva.


Mateus e Lucas são as únicas fontes canônicas que tratam do nascimento de Jesus. No entanto, ambos constroem trajetórias diferentes para justificar a presença de Maria, José e o nascimento de Jesus em Belém. É o que veremos a seguir:

2.2. Lucas

No capitulo 2 do Evangelho de Lucas, José e Maria vivem em Nazaré, mas foram obrigados a seguir para Belém para participar de um censo promovido pelo Presidente Quirino (Síria), por ordem do Imperador César Augusto.

E aconteceu naqueles dias que saiu um decreto da parte de César Augusto, para que todo o mundo se alistasse. Este primeiro alistamento foi feito sendo Quirino Presidente da Síria. E todos iam alistar-se, cada um à sua própria cidade. E subiu também José da Galileia, da cidade de Nazaré, à Judeia, à cidade de Davi, chamada Belém (porque era da casa e família de Davi).” (Lucas: 2,1-4).

Os quatro primeiros versículos de Lucas que narram à viagem de Maria e José a Belém geram controvérsias documentais graves. Historicamente, o censo atribuído a Quirino é datado do ano 6 (DEC), quando da passagem da região da Judeia ao domínio Romano, após o exilio de Herodes Arquelau, príncipe da região e filho de Herodes, o Grande.

Além disso, é sabido que o recenseamento realizado por Quirino dirigiu-se tão somente aos moradores da Judeia, o que não contemplava os habitantes da Galileia, sob outra jurisdição político-administrativa (CHEVITARESE, 2010). Ainda que José fosse alegadamente descendesse de Davi, o recenseamento visava impostos sobre propriedades e agricultura, e Lucas não indica que José possuísse bens em Belém. Isso levanta dúvidas sobre a necessidade real de sua presença em Belém. Kennedy (2024), arqueólogo e apologista cristão, defende que o decreto de César Augusto teria abrangido todo o Império Romano. Ele observa que Lucas emprega uma expressão que pode ser traduzida como "toda a terra habitada", referindo-se ao Império como um todo. Essa interpretação, contudo, é contestada por historiadores críticos, que veem no texto um esforço narrativo de situar Jesus em Belém, com base em profecias messiânicas, e não uma reconstrução factual do contexto romano.

Com as narrativas contidas no Evangelho de Lucas fica claro a contradição e um aparente esforço do autor para posicionar Maria e José em Belém, retirando-os de Nazaré, de modo que Jesus pudesse nascer em Belém, atendendo assim à crença de que Jesus era da linhagem do Rei Davi, cumprindo as profecias de Isaias, Samuel, Jeremias e Miqueias, profetas do Antigo Testamento:

- A tradição cristã vê em Isaias a profecia messiânica que aponta para Jesus como descendente do Rei Davi. “Do tronco de Jessé sairá um rebento, e das suas raízes um renovo frutificará.” (Is 11,1).

- Em Samuel, o profeta apresenta um texto que representaria a aliança davídica, em que Deus promete a Davi que sua descendência seria eterna: “Estabelecerei depois de ti o teu descendente, que procederá de ti, e confirmarei o seu reino. [...] Firmarei para sempre o trono do seu reino” (2SM 7,12-13).

- Em Jeremias, a esperança messiânica ligada a um novo rei da linhagem de Davi é reforçada: “Eis que vêm dias, diz o Senhor, em que levantarei a Davi um Renovo justo; e, sendo rei, reinará e agirá sabiamente, e executará o juízo e a justiça na terra” (Jr 23,5).

- Já Miqueias associa a vinda do líder messiânico à cidade de Belém, a mesma de onde veio Davi: “E tu, Belém-Efrata, pequena demais para figurar entre os clãs de Judá, de ti sairá àquele que há de reinar sobre Israel, e cujas origens são desde os tempos antigos, desde os dias da eternidade” (Mq 5,2).

Outro problema em Lucas (1,5) é que ele situa a gravidez de Maria na época de Herodes, o Grande. É sabido que este governante morreu no final de março ou início de abril, em 4 (AEC). Na sequência, o autor afirma que Maria dá à luz quando Quirino era Governador da Síria (Lucas, 2,2), o que só ocorreu em 6 (DEC), Isso quer dizer que a gestação de Maria teria durado uma década (CHEVITARESE, 2010).

Essa discrepância temporal compromete a coerência histórica do relato lucano e evidencia o uso de marcos políticos não como dados cronológicos precisos, mas como artifícios narrativos. Ao colocar a concepção de Jesus sob Herodes e o nascimento sob Quirino, Lucas não parece interessado em alinhar-se aos registros factuais, mas em construir uma narrativa teológica que situe o nascimento de Jesus em um contexto de tensão e dominação. O evangelista mobiliza figuras de autoridade conhecidas do público - Herodes, Quirino, César Augusto - não para compor uma cronologia confiável, mas para reforçar a ideia de que o nascimento do Messias se dá em meio ao domínio estrangeiro, prenunciando a subversão da ordem estabelecida. A leitura crítica, portanto, exige que se distinga entre a intenção histórica e a intenção literária do texto.

A seguir, analisaremos o Evangelho de Mateus, outro documento canônico que trata do nascimento de Jesus de Nazaré, cuja narrativa, embora distinta da lucana, também apresenta elementos simbólicos e problemáticos sob o crivo da crítica histórica.

2.3. Mateus

Os Evangelhos de Lucas (80 - 95 DEC.) e Mateus (80 - 90 DEC.) foram escritos praticamente no mesmo período histórico, mas apresentam problemas em relação às informações sobre o nascimento de Jesus. A seguir, faremos essa analise.

O autor de Mateus começa sua narrativa após o nascimento de Jesus sem mencionar o deslocamento realizado por José e Maria, de Nazaré a Belém: “e, tendo nascido Jesus em Belém de Judeia, no tempo do rei Herodes, eis que uns magos vieram do oriente a Jerusalém” (Mateus 2,1). A narrativa prossegue advertindo que Herodes está à procura do menino Jesus para matá-lo, por isso o Anjo do Senhor manifestou-se em sonho a José e lhe disse: “E, tendo eles se retirado, eis que o anjo do Senhor apareceu a José num sonho, dizendo: Levanta-te, e toma o menino e sua mãe, e foge para o Egito, e demora-te lá até que eu te diga; porque Herodes há de procurar o menino para matá-lo” (Mateus 2,13). Todavia, como Arquelau, filho de Herodes, havia se tornado governador da Judeia, Maria, José e Jesus se dirigem para Galileia e foram morar em Nazaré, passando Jesus a ser reconhecido como “Nazareno”: “E, ouvindo que Arquelau reinava na Judeia em lugar de Herodes, seu pai, receou ir para lá; mas avisado num sonho, por divina revelação, foi para as partes da Galilei” (Mateus 2,13). “E chegou, e habitou numa cidade chamada Nazaré, para que se cumprisse o que foi dito pelos profetas: Ele será chamado Nazareno” (Mateus 2,23).

Segundo Ehrman (2014), essas narrativas não podem ser harmonizadas historicamente, pois criam narrativas próprias para satisfazer a expectativa de que o Messias deveria nascer em Belém. Essa divergência textual revela que o local de nascimento não era uma tradição fixa, mas uma adaptação ao ideal messiânico. John Meier (1991), padre católico e um dos mais prestigiados estudiosos bíblicos dos Estados Unidos, explica que "o nascimento em Belém não é parte de um evento histórico, mas de uma declaração teológica escrita na forma de uma narrativa histórica" (Meier, 1991, p. 212).

De acordo com Brown (1993), as narrativas de Lucas e Mateus, além de diferentes são contraditórias em vários detalhes. A saber:

- Em Lucas (2,1-5) um censo decretado por César Augusto teria sido o motivo que obrigou José a viajar de Nazaré para Belém; já Mateus, não cita o motivo da viagem de José e Maria a Belém e nem o censo, que supostamente teria sido obrigatório para todo o Império Romano;

- Em Lucas (2,7) Jesus nasce no estabulo, pois não havia vaga na hospedaria. Em Mateus, Jesus nasce em casa. “E, entrando na casa, acharam o menino com Maria sua mãe e, prostrando-se, o adoraram; e abrindo os seus tesouros, ofertaram-lhe dádivas: ouro, incenso e mirra” (Mateus 2,11).

- Em Lucas (1,26-38) o anjo Gabriel aparece para Maria. Em Mateus (1,20-24) o anjo aparece em sonho para José;

- Em Lucas (2,22-39) após o nascimento à família viaja para Jerusalém para apresentar Jesus ao Templo. Em Mateus (2,13-23), à família foge para o Egito e só retornam após a morte de Herodes, o Grande.

Brown (1993) sustenta que essas diferenças não são meramente complementares, mas muitas vezes mutuamente excludentes, sugerindo que tanto Lucas quanto Mateus trabalham com tradições independentes e com propósitos teológicos próprios.

No próximo item, abordaremos rapidamente o tema sob a perspectiva de outros expoentes do Cristianismo primitivo: Marcos, João e Paulo. Embora esses autores não mencionem diretamente o local do nascimento de Jesus, todos demonstram conhecimento com a expectativa messiânica vinculada à linhagem davídica - uma tradição consolidada nas Escrituras judaicas, segundo a qual o Messias deveria descender do rei Davi.

2.4. Outras Fontes

O Evangelho de João, escrito cerca de 20 anos depois do de Marcos, também não associa Jesus a Belém. Ele fala da Galileia como o povo de Jesus. Na verdade, Jesus conhece ali seus primeiros discípulos, faz “milagres” e tem irmãos. O apóstolo menciona um debate em que alguns judeus se referem a uma profecia afirmando que o Messias seria descendente de Davi e viria de Belém. “Então alguns da multidão, ouvindo essas palavras, diziam: Verdadeiramente este é o Profeta. Outros diziam: Este é o Cristo. Mas alguns perguntavam: Vem, pois, o Cristo da Galileia? Não diz a Escritura que o Cristo vem da descendência de Davi e de Belém, da aldeia de onde era Davi? Assim houve divisão entre o povo por causa dele” (João 7:40-43).

De qualquer forma, João e Marcos não foram os únicos. O apóstolo Paulo, que escreveu os primeiros documentos do Novo Testamento, considerava Jesus um descendente de Davi, mas também não expressou esse conhecimento em nenhuma de suas cartas (Romanos, 1 e 2 Coríntios, Gálatas, Efésios, Filipenses, Colossenses, 1 e 2 Tessalonicenses, 1 e 2 Timóteo, Tito e Filemom).

É importante destacar que os textos extracanônicos não integraram o cânone neotestamentário porque foram rejeitados pelas lideranças cristãs que se autodefiniam como ortodoxas. Essas obras traziam representações de Jesus que destoavam das fórmulas de fé que, aos poucos, foram sendo legitimadas nos espaços de poder teológico e político do cristianismo nascente. A consolidação desse processo se intensificou no século IV, especialmente com o Concílio de Niceia, em 325, quando uma vertente cristã passou a ser reconhecida como ortodoxa. Essa vertente foi posteriormente oficializada pelo imperador Teodósio I, por meio do Édito de Tessalônica, em 380, transformando-se na expressão religiosa autorizada do Império Romano. É nesse intervalo, entre a disputa doutrinária e o reconhecimento imperial, que se cristaliza a ideia de um cânone cristão, moldado à luz das Escrituras judaicas, mas filtrado por critérios teológicos e interesses eclesiásticos da época.

Para Souza (2021), os critérios que conduziram o processo de seleção dos textos canônicos pautavam-se não só na popularidade e na antiguidade de certas narrativas que já desfrutavam de significativa aceitação e circulação entre as comunidades cristãs, mas também tinham de dizer que Jesus nasceu da Virgem Maria, morreu pela redenção dos pecados humanos, foi sepultado e ressuscitado, além da crença de que Jesus retornará para julgar os vivos e os mortos (parusia).

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

As inconsistências encontradas nos relatos de Lucas e Mateus, assim como de outros autores dos Evangelhos, não devem ser vistas apenas como interpolações, mesmo que elas existam em vários textos bíblicos da antiguidade. É plausível também entendê-las como resultado das dificuldades comuns da época em que esses textos foram escritos. Os evangelistas lidavam com escassez de registros, fontes orais fragmentados e objetivos teológicos distintos. Nesse contexto, divergências entre datas, nomes e circunstâncias não são necessariamente sinais de má-fé ou invenção, mas parte do esforço de reconstruir uma narrativa aceitável com os recursos disponíveis. Além disso, é importante que saibamos que os textos contidos nos Evangelhos não foram - necessariamente - escritos para leitores do século XXI, mas para comunidades do seu próprio tempo. Suas narrativas respondiam a expectativas religiosas, códigos culturais e realidades históricas específicas. Ignorar esse contexto favorece interpretações anacrônicas, distantes do sentido original que os autores pretendiam transmitir.

Ainda que o nascimento em Belém seja frequentemente interpretado como construção teológica, esse ponto não é unânime. Há quem reconheça a possibilidade de que a tradição tenha, sim, algum lastro histórico. Raymond E. Brown (1993), embora destaque o valor simbólico da localização, admite que a referência a Belém possa ter origem em tradições anteriores à redação dos evangelhos. Já Craig Blomberg (2007) observa que, apesar das diferenças narrativas entre Mateus, Lucas e outros autores, o ponto de chegada é o mesmo - e isso pode sugerir que a associação com Belém já existia e foi apenas moldada conforme os interesses de cada autor.

John P. Meier (2008) também alerta para os riscos de se rejeitar de antemão a tradição de Belém só porque ela não aparece em Marcos ou João. Segundo ele, os evangelistas escreviam com objetivos específicos e omitir um detalhe não significa que ele fosse desconhecido. Nesse sentido, o diálogo registrado em João (7,42), quando os judeus se referem à profecia sobre o Messias vindo de Belém, mostra que essa associação não nasceu nos evangelhos, mas já circulava no imaginário popular.

Portanto, embora a crítica histórica tenda a considerar Nazaré como local mais provável do nascimento de Jesus, a tradição de Belém não pode ser descartada como pura ficção teológica. Há espaço para se pensar que ambas as localidades - uma real, outra simbólica - convivem dentro da mesma construção narrativa.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BLOMBERG, Craig L. Jesus and the Gospels: An Introduction and Survey. 2. ed. Nashville: B&H Academic, 2007.

BOCK, Darrell L. Jesus According to Scripture: Restoring the Portrait from the Gospels. Grand Rapids: Baker Academic, 2003.

BORG, Marcus J. Jesus: Uncovering the Life, Teachings, and Relevance of a Religious Revolutionary. New York: HarperOne, 1999.

BROWN, Raymond E. The Birth of the Messiah: A Commentary on the Infancy Narratives in Matthew and Luke. Garden City, N.Y.: Doubleday; Anchor Bible Reference Library (edição atualizada), 1977 (atualizada até 1993).

CHEVITARESE, André L. Jesus histórico: uma breve introdução. São Paulo: Vozes, 2021.

CROSSAN, John Dominic. Jesus: A Revolutionary Biography. San Francisco: HarperSanFrancisco, 1994.

EHRMAN, Bart D. O que Jesus disse? O que Jesus não disse? Tradução de Reinaldo José Lopes. São Paulo: Prestígio Editorial, 2014.

KENNEDY, Titus. O verdadeiro Jesus: evidências arqueológicas e históricas de Cristo e dos evangelhos. 2. Ed. São Paulo: LVM Editora, 2024. 304 p. ISBN 978‑655‑052‑2308

MEIER, John P. A Marginal Jew: Rethinking the Historical Jesus. Volume I: The Roots of the Problem and the Person. New York: Doubleday, 1991.

NBR 10520:2023. Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). Informação e documentação - Citações em documentos - Apresentação. Rio de Janeiro: ABNT, 2023.

NBR 6023:2018. Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). Informação e documentação - Referências - Elaboração. Rio de Janeiro: ABNT, 2018.

VERMES, Geza. Jesus: A religião do Jesus judeu. Rio de Janeiro: Imago, 2001.

WOODHEAD, Linda. Christianity: a very short introduction. Oxford: Oxford University Press, 2004.

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