Série Escravidão: O Fenômeno da Escravidão no Brasil entre os Séculos XV E XIX

📷Mercado de Valongo © Rugendas
🏠Parnaíba (PI)

Artigo de Walter Fontenele (Graduado Antropologia -UESPI).

Este é o primeiro de uma série de artigos que escreveremos sobre o fenômeno da escravidão no Brasil durante os séculos XV e XIX. Neste primeiro, resolvemos abranger todo o período de forma bem reduzida. Nos demais - que serão postados no decorrer de 2023 - trataremos de assuntos mais específicos da trágica aventura escravista que abalou a humanidade.


1. INTRODUÇÃO

Os navios negreiros que chegam ao Brasil apresentam um retrato terrível das misérias humanas. O convés é abarrotado por criaturas, apertadas umas às outras tanto quanto possível. Suas faces melancólicas e seus corpos nus e esquálidos são o suficiente para encher de horror qualquer pessoa não habituada a esse tipo de cena. Muitos deles, enquanto caminham dos navios até os depósitos onde ficarão expostos para a venda, mais se parecem com esqueletos ambulantes, em especial as crianças. A pele, que de tão frágil parece ser incapaz de manter os ossos juntos, é coberta por uma doença repulsiva, que os portugueses chamam de sarna. (James Henderson)
O texto em epigrafe, do cônsul inglês, James Henderson, é o relato de um desembarque de escravos no antigo cais do Valongo, localizado entre os atuais Bairros da Gamboa, da Saúde e do Santo cristo, na cidade do Rio de Janeiro, que foi um dos mais movimentados local de desembarque de escravos, vindos, principalmente, do Continente africano (Gomes, 2019).

O período que compreendeu as grandes navegações e o inicio da colonização portuguesa no Novo Mundo trouxe o horror do comércio de gente, uma prática - como veremos mais adiante - recorrente desde o inicio das grandes civilizações. Entre os séculos XVI e XIX, o tráfico negreiro foi responsável pelo aprisionamento de milhares de seres humanos que foram transportados para longe de suas famílias e de suas terras, em milhares de viagens transatlânticas. Toda essa gigantesca estrutura de escravização de pessoas redesenhou o mapa mundial; propiciou a criação de novas colônias (que posteriormente se transformaram em Nações); fez surgir novas rotas de navegação; ampliou o leque de produtos comercializáveis entre a América, Europa, África e Ásia e ajudou a povoar as colônias portuguesas, uma preocupação constante da Metrópole, devido ao grande pesadelo de Portugal, o risco de invasão em suas terras por Nações inimigas.

Portugal e sua colônia estiveram 100% envolvidos na trágica empreitada escravocrata. Ao longo de três séculos e meio, foram transportados para o Brasil cerca de 47% de todo o tráfico de africanos realizado por Portugal. Para o professor da Universidade de Emory (Atlanta-EUA), David Eltis,

O tráfico de escravos transatlântico foi o maior deslocamento forçado de pessoas a longa distância ocorrida na história, tendo constituído, até meados do século XIX, o maior manancial demográfico para o repovoamento das Américas após o colapso da população ameríndia. Cumulativamente, até 1820, para cada europeu quase quatro africanos haviam atravessado o Atlântico, e, dadas as diferenças nos índices de gênero entre os fluxos de migrantes europeus e africanos, cerca de quatro em cada cinco mulheres que atravessaram o Atlântico vinham da África. (ELTIS, 2007).

Os números mostram que aproximadamente 2 milhões de escravizados foram transportados do Continente Africano para o Brasil, entre os século XVI e XIX, impulsionado principalmente pelo declínio da escravização dos indígenas (ELTIS, 2007). A solução encontrada pelos colonizadores foi à escravização de africanos, sustentáculo para construir a base econômica responsável pelo crescimento, por exemplo, da mineração e da monocultura da cana-de-açúcar, fontes de riquezas para Portugal.

A escravização de seres humanos foi - e ainda é em outros moldes - a grande chaga da humanidade, desde tempos imemoriais. Reis, nobres, comerciantes, burgueses, membros da Igreja, pessoas comuns e até escravos forros participaram ativamente do comércio (compra e venda) de escravos, tendo sido o Brasil o último dos grandes centros escravistas da América a abolir, de forma oficial, a escravidão, em 13 de Maio de 1.888. Segundo o historiador A. C. Saunders,

Mesmo as pessoas mais pobres podiam comprar cativos, arrematados por preços muitos baixos em liquidações promovidas pela Casa dos Escravos para se livrar do estoque de africanos doentes ou com defeitos físicos. (SAUNDERS, 1982).

Vale ressaltar que a abolição aconteceu mais por interesses políticos e econômicos do qualquer outra coisa, já que a Inglaterra - a grande potência da época - fazia pressão política dos dois lados do Atlântico para o fim do tráfico negreiro e apreendia navios negreiros transportando escravos, trazendo sérios prejuízos financeiros aos traficantes.

Para avaliarmos e melhor compreendermos a problemática da escravidão, optamos por usar o método exploratório com caráter qualitativo e fontes secundárias, com leituras e releituras de documentos antigos, tese de mestrado e doutorado, livros e periódicos. Assim sendo, a pesquisa terá como base obras de historiadores brasileiros e estrangeiros que já pesquisam o tema há várias décadas, como por exemplo, Laurentino Gomes, Marcus Rediker, David Eltis, Orlando Sattamini Duarte, entre outros. O escopo do artigo foi o século XVI e o século XIX, período que correspondeu ao ápice da escravização de africanos, do Continente africano para a América.

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O presente trabalho está estruturado em três tópicos, assim distribuído: No primeiro são feitas referências de estudos realizados por vários autores e documentos históricos (Gomes, Rediker, Eltis, dentre outros) sobre a ancestralidade da problemática da escravidão no mundo e uma abordagem da metodologia aplicada na pesquisa; no segundo, foram abordados, em detalhes, alguns períodos da história da escravidão no Brasil, além de estatísticas de números do fenômeno escravista, abordagem sobre a embarcação utilizada nas operações (navio negreiro), o primeiro leilão e a chegada dos primeiros escravos africanos ao Brasil; no terceiro e último são apresentadas às considerações finais.

1.1. A Escravidão na Antiguidade

 A palavra “escravo” é uma derivação do Latim “Sclavus”, palavra usada pelos Romanos para designar os eslavos, nome genérico dos habitantes da região dos Bálcãs (Leste Europeu), Sul da Rússia e das margens do Mar Negro que foram, por muitos séculos, capturados e vendidos como escravos. Os habitantes das regiões acima mencionadas tinham uma particularidade, todos eram brancos e de olhos claros, o que nos leva a constatação que naquela época a cor da pele ainda não era sinônimo de escravidão, o que só veio a acontecer com o inicio da captura de indígenas no Brasil-Colônia e o tráfico de escravos africanos.

O comércio de seres humanos é uma instituição que acompanha a humanidade há muito tempo. Antes da era cristã - e nas primeiras civilizações - a escravidão era comum e sua prática constava nos principais livros sagrados e Códigos Legislativos. No Código de Hamurabi (1782 – 1759 A.C), encontrado por arqueólogos em 1901, existem fragmentos de Leis destacando, por exemplo, o respeito aos escravos; outros fragmentos que confirmam a antiguidade da escravidão foram encontrados nas Tábuas de “Alalakn” (1550 - 1200 A.C); No 3º Livro da Bíblia, Levítico, existem várias passagens que corroboram a prática escravocrata, bem antes da era cristã,

Além disso, dos filhos dos estrangeiros que se hospedam entre vós, deles comprareis, e de suas famílias que estão com vocês, que geraram em vossa terra: e eles serão vossa propriedade. E deixá-los-ei como herança para vossos filhos depois de vós, para mantê-los como propriedade; deles tereis seus escravos para sempre: mas sobre vossos irmãos, os filhos de Israel, não tereis domínio, um sobre o outro, com severidade (Levítico, 25:44-46).

Em Gênesis, 1º Livro da Bíblia, temos várias passagens que narram o ódio que os filhos de Jacó sentiam pelo seu irmão, José. Apesar de José não ser o primogênito, era segundo as escrituras, o seu filho preferido:

[...] Então Judá disse aos seus irmãos: Que proveito haverá que matemos a nosso irmão e escondamos o seu sangue? Vinde e vendamo-lo a estes ismaelitas, e não seja nossa mão sobre ele; porque ele é nosso irmão, nossa carne. E seus irmãos obedeceram. Passando, pois, os mercadores midianitas, tiraram e alçaram a José da cova, e venderam José por vinte moedas de prata, aos ismaelitas, os quais levaram José ao Egito. (Gênesis, 37:26-28).
Nos contratos de empréstimos na antiga Babilônia os credores poderiam - na falta do pagamento - realizar a penhora de casa, escravos, campos, filhos, mulher e por fim, aprisionar o próprio devedor. Em outros casos, o credor praticava violência física contra o escravo, na ânsia da família se comover e realizar o pagamento da dívida. (VENDRAME, 1981).

Os exemplos citados são apenas um pequeno recorte de antigas civilizações que praticavam a escravidão por meio do comércio, espolio de guerras, cobrança de dívidas, dentre outros embasada na tradição de seus livros sagrados e por suas Leis. Na verdade, não existem indícios que a escravidão, nas primeiras civilizações, fosse algo abominável, hediondo e passível de punição, como nos dias atuais. A escravidão na antiguidade nunca se constituiu num “problema”, que precisasse de solução (VENDRAME, 1981).

O desenvolvimento das civilizações e a escravidão sempre andaram de mãos dadas, sendo os escravos os artífices que ajudaram a construir boa parte das principais obras da humanidade. Foram eles, por exemplo, que construíram: a Grande Muralha (China); o Coliseu (Anfiteatro Flavio, Roma); os Jardins Suspensos da Babilônia (Iraque). Além disso, os escravos estiveram presentes em várias guerras que decretaram a independência de Nações, como os EUA, por exemplo. No Brasil, a presença dos cativos está presente nos Arcos da Lapa, na cidade do Rio de Janeiro (RJ); na Igreja de Nossa Senhora dos Homens Preto, em Salvador (BA) e nos “639 minúsculos diamantes da Coroa de Dom Pedro II, exposta no Museu Imperial de Petrópolis - garimpado por escravos em Minas Gerais e outras regiões do Brasil” (Gomes, 2019, p, 62).

A     presença e as obras realizadas pelos escravos orbitaram todas as sociedades até o século XIX, quando foi instituído o fim da escravidão. Importante salientar que o fim da escravidão não aconteceu de forma homogênea e que, disfarçadamente, ainda acontece em praticamente todas as sociedades contemporâneas, sendo os números atuais mais impressionantes do que os da época do tráfico negreiro. Segundo Laurentino Gomes (2019),

[...] Anti-Slavery Internacional defensora mais antiga instituição de defesa sucessora da British Anti-Slavery Society fundada em 1823 para combater o tráfico negreiro estima que existam hoje mais escravos no mundo do que em qualquer outro período durante os 350 anos de escravidão africana na América. Seriam 40 milhões de pessoas vivendo nessas condições, ou seja, mais do que o triplo do total de cativos no Atlântico até meado do século XIX. Segundo dados, cerca de 800 mil pessoas são traficadas internacionalmente ou mantidas sob alguma forma de cativeiro, impossibilitadas de retornar livremente e por seus próprios meios aos locais de origem. (GOMES, 2019, p, 27).

Os dados da “Anti-Slavery Internacional” são alarmantes, mas não uma surpresa absoluta, já que os últimos países a abolirem - oficialmente, é bom frisar - a escravidão foram: Etiópia (1942), Marrocos (1956), Arábia Saudita (1962) e Mauritânia (2007), todos em pleno século XXI. (GOMES, 2019).

Destarte, é importante levar em consideração que as antigas civilizações e seus mandatários sempre tiveram a ânsia de ser lembrado pelas gerações futuras, o que realmente se concretizou através das grandes obras, principalmente de engenharia. Importante também é salientar que todas essas obras, todo o poder e a riqueza que essas civilizações alcançaram teve a participação fundamental da mão de obra escrava, seja de escravos brancos e de olhos claros, indígenas ou africanos.

2. A ESCRAVIDÃO NO BRASIL

2.1. O Primeiro Leilão em Portugal

O Brasil foi um dos destinos principais do tráfico negreiro partindo do Continente africano, durante três séculos e meio. Para compreendermos o fenômeno escravista em nosso país, se faz necessário voltarmos ao século XV, data do primeiro leilão de escravos em solo português, que aconteceu em 8 de Agosto do ano de 1.444, em Lagos, um pequeno vilarejo na região do Algarves, no sul de Portugal. Nesse dia fatídico para a humanidade, foram desembarcados, de seis navios negreiros, 235 seres humanos (homens e mulheres), todos cativos. Do lote, 231 escravos foram arrematados de imediato e quatro foram doados para Igrejas e Monastérios. Todas as nuances do leilão foram registrados por Gomes Eanes de Azurara, cronista de Dom Henrique, filho de Dom João I, irmão do regente ao trono de Portugal e dono da carga de escravos capturados no Continente africano (GOMES, 2019). A captura dos escravos foi obtida sob o comando de Gil Eanes - o primeiro navegador a cruzar o Cabo Bojador - e Nuno Tristão, na Ilha das Garças, localizada na baia de Arquim, na Mauritânia (último país a abolir oficialmente a escravidão, em 2007), costa ocidental da África.

Gomes Eanes de Azurara, mais conhecido como Zurara, descreveu todos os detalhes do leilão em seu manuscrito, encontrando na Biblioteca Real de Paris no ano de 1.837 e posteriormente transformado no livro “Crônica do Descobrimento e Conquista da Guiné (GOMES, 2019)”. Segundo Azurara,

Uma coisa maravilhosa de se ver, porque entre eles havia alguns de razoada brancura, formosos [...]; outros menos brancos, como pardo; outros tão negros como os etíopes, disformes nas feições tanto nos rostos quanto nos corpos, como a representar imagens do hemisfério inferior. (AZURARA, 1989, p, 96 a 98).

Em seguida, ele faz um relato um pouco mais emocionado das expressões dos escravos e com o destino que os aguardavam.

Qual seria o coração, por duro que pudesse ser que não fosse pungido de piedoso sentimento vendo assim aquela campanha¿ porque uns tinha as caras baixas e os rostos lavados de lágrimas; [...] outros estavam gemendo muito dolorosamente, olhando para os céus [...], bradando altamente como se pedisse socorro ao Pai da Natureza; outros feriam o rosto com as palmas das mãos, lançando-se estendidos no chão; outros faziam suas lamentações em cantos, segundo o costume de sua terra [...] Pelo o que convinha a necessidade de se apartarem os filhos dos pais; as mulheres, dos maridos; e os irmãos, uns dos outros. A amigos nem parentes não se guardava nenhuma Lei, somente cada um caía onde a sorte o levava. As mães apertavam seus filhos nos braços e lançavam-se com eles de bruços, recebendo feridas com pouca piedade de suas carnes (AZURARA, 1989, p. 96 a 98).

Dom Henrique é uma figura controversa na história das grandes navegações e famoso pelas alcunhas de “Infante de Sagres” e “O Navegador”. É considerado um herói em Portugal e muito respeitado até hoje no Brasil, sendo tema recorrente nas aulas de história das escolas brasileiras. Ganhou fama também pelos seus feitos como um grande navegador, fato bastante contestado pela historiografia contemporânea. Para Laurentino Gomes, Dom Henrique teria sido o navegador que nunca ou pouco navegou, durante o período das grandes navegações (GOMES, 2019).Todos os supostos feitos de Dom Henrique são contestados também por dois historiadores portugueses: Jaime Zuzarte Cortesão e Tomaz Ribeiro Colaço, no livro “O Século dos Descobrimentos”. Um exemplo diz respeito à tão falada Escola de Sagres, um Centro Náutico, supostamente, criado por Dom Henrique para preparar e qualificar os navegadores, para as grandes navegações. Segundo Jaime Cortesão,

Supôs-se, durante muito tempo, que na Vila do Infante, quer situada no Cabo de S. Vicente, quer no de Sagres, houvesse uma escola náutica, no sentido estrito da palavra, com mestres e discípulos, onde estes fossem instruídos nas regras duma nova ciência de navegação. O melhor conhecimento dos fatos desfez essa crença. (CORTESÃO, 1961, p.55).

Já para Tomaz Ribeiro Colaço,

É negada a Escola de Sagres. Provavelmente, negada com razão. A Universidade de Coimbra, bem mais antiga, conserva paredes da primeira dinastia. A Batalha, os Jerônimos, a Torre de Belém, sobram para demonstrar que a geração do Infante era de excelentes construtores. (COLAÇO, 1961, p. 60).

O que se sabe com relativa precisão sobre Dom Henrique é que ele foi organizador e financiador de empreitadas escravistas em vários reinos do Continente africano, primeiramente capturando e, posteriormente, se associando a chefes tribais para a compra de cativos, que seriam revendidos na Metrópole portuguesa.

Polêmicas à parte, o ponto em que todos os historiadores concordam é a conquista de Ceuta, em 1415, em que Dom Henrique participou ativamente, a pedido de D. João I. A cidade de Ceuta foi tomada com relativa facilidade pelas tropas de Portugal, dando inicio assim a expansão marítima, que culminou com a chegada dos portugueses ao Novo Mundo. Dom Henrique faleceu em Sagres, em 13 de Novembro de 1.460.

2.2. O Inicio e o Desenvolvimento do Tráfico no Brasil

A escravidão no Brasil começou pouco tempo depois da chegada dos colonizadores portugueses a Pindorama (Terra das Palmeiras), primeiro dos sete nomes do Brasil e que foi atribuído pelos indígenas. Em um primeiro momento, isso em 1503, a convivência entre os colonizadores e os colonizados foi relativamente pacifica. Esse ar de paz e colaboração durou aproximadamente três décadas, sendo vantajosa aos portugueses, já que eles usavam os indígenas da tribo dos Guaranis como mão de obra para a labuta e também para as guerras contra tribos hostis. Todavia, com o passar dos anos a relação foi se deteriorando, chegando ao fim com a formação das Capitanias Hereditárias e das Sesmarias, que propiciaram a expropriação das terras e a posterior escravização pelos portugueses dos seus ex-aliados (SUCHANEK, 2012, p, 241).

Sobre as Capitânias Hereditárias e seus donatários o professor, José Ribamar Bessa Freire, e a professora, Márcia Fernanda Ferreira Malheiro, explicam que,

[...] Esses novos senhores - os donatários - podiam explorar as riqueza da capitania, fundar vila, nomear ouvidores e tabeliães e arrecadar dizimo. Detinham a posse de 20% do total da terra, devendo o restante ser loteado e concedido a terceiros - homens de muita posse e família - sob o sistema de sesmarias. As Cartas de Doação concediam ainda aos donatários o privilegio de escravizar índios, permitindo-lhe "cativar gentios para seu serviço e de seus navios”. (Freire & Malheiros, 1997, p. 37)

A criação das Capitânias Hereditárias foi à solução encontrada pela Metrópole para povoar as novas terras, promover a miscigenação, tornar as terras produtivas e garantir a defesa contra outros colonizadores europeus (Holandeses, Franceses...), que também tinham interesses mercantis no Novo Mundo.

Entre 1.534 e 1.570 - já com o estabelecimento das Capitânias Hereditárias e das Sesmarias - a escravização dos indígenas atingiu o seu ápice. Nesse período, os colonos, em busca de mão obra, faziam incursões - chamadas de Saltos - em tribos e roubavam os índios que lá haviam sido aprisionados, em guerras entre as várias tribos que habitavam a colônia. A escravização dos indígenas pelos colonizadores foi um processo complicado, devido à ferocidade e o conhecimento que os indígenas possuíam da região. Os que eram feitos prisioneiros eram utilizados em várias atividades, como por exemplo, a mineração e o plantio da cana de açúcar. Além das dificuldades em obter a cooperação dos indígenas escravizados existia também a discordância com os Jesuítas, que não aprovavam a escravização, pois, segundo eles, a Igreja tinha a missão de catequizar e salvar aquelas almas das trevas. Apesar da atitude “humanista”, os Jesuítas, assim como todas as outras ordens religiosas da época, participaram ativamente da escravização dos indígenas, realizando, inclusive, o comércio de escravos com outras ordens religiosas, estabelecidas na África.

Portugal e sua principal colônia, o Brasil, foram grandes protagonistas da terrível aventura da escravidão, durante 350 anos. Nesse período, quase 2 milhões (vide item 2.3) de escravizados africanos foram enviados para o Brasil, sendo o primeiro desembarque em solo brasileiro registrado em 1.535, quando a nau Bretoa, de bandeira portuguesa, comandada pelo Capitão, João Machado Fernandes, aportou no Brasil com 287 escravos africanos vivos, de um total de 359. Os 72 escravos que morreram a bordo foram jogados ao mar da amurada do Bretoa e seus corpos foram estraçalhados pelos tubarões, que seguiam os navios negreiros por milhares de quilômetros, a espera de alimentação. (SlaveVoyages.org).

O tráfico negreiro foi um empreendimento comercial de grande lucratividade. Apesar das grandes despesas (manutenção do navio, mantimentos, impostos, taxas para a Igreja, salários da tripulação...) o retorno financeiro, devido ao baixo preço de um escravo no Continente africano, era, na maioria das vezes, garantido, mesmo com os altos índices de mortalidade de escravos a bordo. Como visto anteriormente, excluindo os mendigos qualquer pessoa poderia ser dona de escravos, de um Rei a um simples trabalhador (SAUNDERS, 1982).

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O Brasil e o seu vasto território exigiam um esforço hercúleo de Portugal para a sua colonização, num período em que a Metrópole estava mais preocupada com o caminho para as índias e com o comércio das especiarias, produtos valorizados em toda a Europa. Por outro lado, Portugal tinha esperanças de encontrar riquezas nas suas novas terras, o que se concretizou com a descoberta de ouro e de pedras preciosas; além disso, era preciso a todo custo impulsionar a lavoura e povoar o novo Continente, já na mira de outras potências. Com todas essas preocupações e com o declínio da população nativa, a compra de escravos da África parecia ser a solução mais barata, o que fez do Brasil o responsável por aproximadamente 47% do total de pessoas escravizadas, nos três séculos e meio em que perdurou a escravidão. Com todo esse contingente a serviço da lavoura, o Brasil passou, entre 1.560 e 1.620, a ser o responsável pelo montante de açúcar consumido na Europa, com destaque para Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro (ELTIS, 2007).

No século VXIII, os portugueses já eram um dos mais importantes impérios no tráfico de escravos no oceano Atlântico e um dos maiores produtores de produtos em “plantations”, sistema que tinha como pilares: latifúndio, monocultura, mão de obra escrava e produção voltada para a exportação, tendo como destaque o açúcar.

Com o declínio da produção e do comércio do açúcar brasileiro, devido à concorrência dos ingleses e holandeses, outra fonte de riqueza exigiu mais mão de obra escrava, a mineração de ouro e pedras preciosas. O historiador David Eltis explica que,

No final do século XVII, as descobertas de ouro, primeiro em Minas Gerais e mais tarde em Goiás e em outras partes do Brasil, deram início a uma transformação no tráfico de escravos que provocou uma expansão ainda maior desse comércio [...] O volume de escravos transportados chegou a trinta mil por ano na década de 1690, e a oitenta e cinco mil um século mais tarde. Mais de oitenta por cento dos africanos incorporados ao tráfico durante toda a era do comércio negreiro fizeram suas viagens durante o período de um século e meio iniciado em 1700. (ELTIS, 2017).

Com a instabilidade da monocultura da cana-de-açúcar a descoberta de ouro e pedras preciosas - por volta do ano de 1.693 - deu um novo alento a ânsia da Metrópole por riquezas e, naturalmente, por mão de obra escrava. A descoberta de minas de metais preciosos deu inicio a “corrida do ouro”; intensificou o tráfico negreiro e criou muitas vilas e comunidades que, posteriormente, se transformariam em cidades, principalmente no Estado de Minas Gerais e São Paulo.

O tráfico negreiro entre o Continente africano e o Novo Mundo foi um empreendimento duradouro, complexo e gigantesco que envolveu milhares e milhares de pessoas dos dois lados do oceano Atlântico, gerando riqueza para alguns e sofrimentos para outros. Os números do fenômeno escravista são astronômicos e assustadores, porém importantes para nossa reflexão. É o que veremos a seguir.

2.3. Os Números do Tráfico Negreiro

Em 1.511, a nau Bretoa, de propriedade de Florentino Bartolomeu Marchioni e do cristão-novo, Fernando de Noronha, aportou na capital portuguesa, com uma carga inusitada: papagaios, pau Brasil, peles de onças e 35 indígenas aprisionados, que seriam comercializados em Portugal (GOMES, 2019). Essa foi à primeira viagem transatlântica das mais de 36 mil que seriam realizadas em três séculos e meio de tráfico negreiro.

O tráfico de escravos do Continente Africano para Europa, América e Ásia entre o século XVI e o século XIX foi o maior, o mais cruel e o mais sangrento deslocamento forçado de pessoas na história da humanidade. Em 1.500, o oceano Atlântico - que dificultava a interação regular entre os povos dos quatro Continentes banhados por ele - se tornou uma grande via para o tráfico negreiro (ELTIS, 2008). Segundo ainda o historiador,

[...] a mão de obra trazida da África constituiu a base da exploração do ouro e dos recursos agrícolas dos setores de exportação das Américas, tendo o cultivo de açúcar absorvido mais de dois terços dos escravos transportados do outro lado do Atlântico pelas grandes potências europeias e euro-americanas. Por vários séculos, os escravos foram à razão mais importante para o contato entre europeus e africanos. (ELTIS, 2008, p, XX).

O genocídio dos indígenas no Brasil começou com a chegada dos colonizadores europeus, que trouxeram várias doenças, como por exemplo, a Varíola, o Escorbuto e o Sarampo que provocaram a morte de uma grande parcela dos nossos primeiros habitantes, desprovidos de anticorpos para combater as “doenças dos brancos”. Além da morte física de milhares e milhares de nativos, a chegada dos portugueses marcou também o inicio do etnocídio, o processo de aculturação que, pouco a pouco, foi desenraizando valores e costumes culturais milenares dos nossos povos indígenas.

Depois de exterminar, promover a aculturação e escravizar os indígenas os colonizadores europeus iniciaram o processo de tráfico e comercialização de escravos, capturados em vários reinos da África e transportados em aproximadamente 36 mil viagens pelo oceano Atlântico. As cifras dos 350 anos de tráfico negreiro são astronômicas. Segundo Laurentino Gomes em sua obra, “Escravidão Volume I - Do Primeiro leilão de Cativos em Portugal Até a Morte de Zumbi dos Palmares”,

Hoje, sabe-se, com relativa precisão, que 12.521.337 de seres humanos embarcaram para a travessia do Atlântico em cerca de 36 mil viagens de navios negreiros, entre 1.500 e 1.867. Desses, 10.702.657 chegaram vivos à América. Os mortos seria 1.818.680.(GOMES, 2019, p, 255).

Segundo ainda o autor,

O Brasil, sozinho, recebeu 4.9 milhões de cativos, o equivalente a 47% do total desembarcado em todo o Continente Americano entre 1.500 e 1.850.(GOMES, 2019, p, 255).

De 1.444 (ano do primeiro leilão de escravos em Portugal) até 1.850 (ano que o tráfico negreiro começou a declinar) quase 5 milhões de pessoas - entre homens e mulheres - foram traficadas para o Brasil, substituindo a mão de obra dos indígenas. Os fatores principais que impulsionaram essa mudança foram as constantes rebeliões com o trabalho na lavoura e as restrições dos Jesuítas, quanto à escravização dos indígenas (SCHWARTZ, 2018). Outro número que impressiona no tráfico negreiro é o número de mortos. Aproximadamente, 1.818.680 (hum milhão, oitocentos e dezoito mil e seiscentos oitentas) pessoas perderam suas vidas no período de 350 anos, somente na travessia do oceano Atlântico; outras centenas de milhares morreriam depois do desembarque, antes de chegar ao destino final; os que conseguissem sobreviver a todos esses tormentos passariam a desempenhar atividades laborais em várias regiões da colônia, sendo que muitos morreriam devido aos maus-tratos ou assassinados pelos seus senhores ou pelos capitães do mato, em caso de fuga ou rebeldias.

Os números frios do tráfico negreiro - apesar de relevantes para entendermos o tamanho do impacto da escravidão no Continente americano - não são suficientes para expressar a dor e o sofrimento de milhões de seres humanos que foram aprisionados, tratados como animais nos porões dos navios negreiros e submetidos a todo tipo de insalubridades, em viagens que poderiam durar meses. Sobreviver a essas travessias transatlânticas, como vimos anteriormente, não era o fim, mas apenas o começo de uma vida de trabalho, dor e sofrimento, tendo como pagamento o açoite e as torturas, físicas e psicológicas.

O navio negreiro foi um dos mais importantes instrumentos utilizados pelos traficantes de seres humanos na tenebrosa aventura escravista, do Continente africano para o Novo Mundo. É o que veremos a seguir.

2.4. O Navio Negreiro

Senhor Deus dos desgraçados! Dizei-me vós, senhor Deus! Se é loucura... se é verdade tanto horror perante os céus?! Ó mar, por que não apagas Co´a esponja de tuas vagas de teu manto este borrão?... Astros! Noites! Tempestades! Rolai das imensidades! Varrei os mares, tufão! (ALVES, 2000).

O navio negreiro era conhecido como “tumbeiro”, palavra derivada de tumba, devido, principalmente, aos altos índices de mortes de pessoas escravizados durante as viagens do tráfico negreiro. No período de 1.444 a 1.866 foram realizadas aproximadamente 36 mil empreitadas escravistas, transportando mais de 12 milhões de pessoas escravizadas. Para o historiador Marcus Rediker, o navio negreiro “era uma estranha combinação de máquina de guerra, prisão móvel e fábrica” (REDIKER, 2011).

Os navios negreiros eram embarcações visadas pelos corsários, por isso, era necessário que estivessem equipados com canhões (que eram utilizados para se defender, atacar fortificações em terra ou ainda para forçar traficantes relutantes em negociar); eram, logicamente, prisões móveis (pois transportavam centenas de escravizados em seus porões); e eram, por outro lado, fábricas (já que entre os tripulantes existiam vários profissionais para a realização de diversos tipos de reparos, durante as travessias). Segundo Laurentino Gomes (2019),

Havia uma rigorosa organização do trabalho a bordo, com hierarquias, papeis e tarefas cronometradas, de modo a tornar o mais eficiente possível à produção desse misto flutuantes de fábrica, máquina de guerra e presidio. (GOMES, 2019, p, 277-278).

As viagens transatlânticas eram um inferno para os cativos africanos que eram transportados em espaços insalubres e minúsculos, sendo alimentados precariamente e sujeitos a severas punições, a base de chicotadas e com o uso vários instrumentos para mobilizar e punir os mais afoitos, como, por exemplo, grilhões, tornozeleiras e o “bacalhau”, pequeno chicote com tiras de couro com nós ou laminas de metal nas pontas (GOMES, 2019). Além das agressões físicas, os cativos sofriam torturas psicológicas, já que existia a crença entre eles que os homens brancos eram canibais e que todos seriam devorados ao final da jornada. Ser transportados nas condições acima mencionadas, indubitavelmente, aumentavam as chances de mortes entre os cativos. Quando isso acontecia, o local do repouso final para essas pessoas era o mar. Laurentino Gomes (2019) diz que,

Durante mais de três séculos e meio, o Atlântico foi um grande cemitério de escravos. Era no mar, durante a travessia, que as cifras de mortalidade ficavam mais evidentes: como escravos representavam um “investimento”, uma mercadoria valiosa do ponto de vista dos traficantes, cada óbito tinha de ser registrados nos chamados “livros dos mortos” pelos capitães dos navios [...]. (GOMES, 2019, p. 47).

A mortalidade de cativos nos navios negreiros foi tão impactante para a humanidade que chegou inclusive a mudar a rota dos tubarões, que passaram a seguir as embarcações por milhares de quilômetros a espera que algum cativo morto, fosse atirado ao mar da amurada do navio. Segundo o historiador Marcus Rediker,

[...] Os cadáveres eram então atirados sobre as ondas, sem qualquer cerimônia, para ser imediatamente devorados por tubarões e outros predadores marinhos. Segundo inúmeras testemunhas da época, mortes tão frequentes e em cifras tão grandes fizeram com que esses grandes peixes mudassem suas rotas migratórias, passando a acompanhar os navios negreiros na travessia do oceano à espera dos corpos lançados. “Os tubarões começavam a seguir os navios negreiros assim que as embarcações alcançavam à costa da Guiné”. (REDIKER, 2011, p, 245).

Apesar de todos os horrores que os africanos escravizados eram obrigados a suportar, ainda existia o medo que eles tinham dos tubarões. Esse temor, às vezes, era usado pelos capitães e por tripulantes para ameaçar e aumentar ainda mais a pressão psicológica, dentro das embarcações. De acordo ainda com o autor,

Os capitães dos navios negreiros usavam deliberadamente os tubarões para infundir o terror durante toda a viagem. Eles contavam com os tubarões para evitar deserções de seus marinheiros e a fuga de escravos durante as longas permanências na costa africana para recolher a carga humana. (REDIKER, 2011, p. 48)

Diante de tanto sofrimentos físicos e psicológicos não era incomum a pratica do suicídio entre os cativos, a bordo dos navios negreiros. Como os escravos eram considerados apenas uma mercadoria e um investimento financeiro os tripulantes tinham a obrigação de evitar os suicídios, que aconteciam principalmente com os escravos que sofriam de “banzo”, um estado de depressão psicológica. “Banzo” é originário do termo “Quimbundo” (língua falada em Angola pelos Ambundos) “mbanza” (MENDONÇA, 1935), interpretado como terra natal ou aldeia. Para Orlando Sattamini Duarte o,

Estado de depressão psicológica que se apossava do africano [...]. Geralmente os que caíam nesta nostalgia profunda, acabavam morrendo. Atribui-se tal estado depressivo à saudade da aldeia da qual provinham, de modo que o banzo atingia somente a primeira geração de escravos, isto é, aqueles diretamente importados da África (MOURA; 2004 p.63).

O “Banzo” atingia os cativos de todos os gêneros. Porém, para as mulheres a situação poderia ser ainda pior, já que elas sofriam estupros, praticados por membros da tripulação, o que aumentava ainda mais o quadro depressivo e a desilusão pela vida.

Uma característica marcante nos navios negreiros era a total falta de higiene, o que facilitava a proliferação de doenças que, ocasionalmente, poderia aumentar o número de mortos e o prejuízo para os traficantes de escravos. Essa característica, junto com as doenças e brigas dentro das embarcações, levou esses navios a ser chamados de tumbeiros, cemitérios ambulantes e infernos flutuantes.

A fedentina dos navios negreiros era tanta que às pessoas em terra sentiam o seu odor fétido, antes mesmo deles chegarem aos portos (GOMES, 2019). O frei Capuchinho Giuseppe Monari, que viajou a bordo de um negreiro de Luanda a Bahia, em 1720, descreveu assim a sua experiência.

É impossível descrever os choros, a confusão, o fedor, a quantidade de piolhos que devoraram aqueles pobres negros. Naquele barco havia um pedaço de inferno. Mas, como os que estão no inferno não têm esperanças de saída, eu me contentaria dizendo que era a nau do purgatório. (GOMES, 2019, p. 289).

A forma como os africanos escravizados eram tratados nos fétidos porões dos navios negreiros se assemelha muito ao tratamento dado aos gados, quando transportados nos caminhões das fazendas aos matadouros. As condições e os tratamentos dispensados aos africanos, dentro e fora das embarcações, eram desumanos e cruéis. Para o historiador David Eltis,

Fosse qual fosse o caminho percorrido, as condições a bordo refletiam o status de excluídas que marcava as pessoas aprisionadas no porão. Nenhum europeu — fosse condenado, servo temporário ou imigrante livre miserável — jamais foi submetido ao ambiente que recebia o escravo africano típico no momento de embarque. Eram separados por sexo, mantidos nus, amontoados, sendo os homens acorrentados por longos períodos. Nada menos do que 26 por cento das pessoas a bordo eram classificadas como crianças, um índice do qual nenhuma outra migração anterior ao século XX sequer se aproximou. (ELTIS, 2007).

Todavia, mesmo com desvantagens em relação aos seus algozes, existem relatos de resistências dos escravos contra seus raptores, dentro dos navios negreiros. O desespero se abatia sobre os africanos depois de alguns dias de navegação e com a certeza que não retornariam mais a sua terra natal. Além da resistência corpo a corpo, os africanos constantemente apelavam para greve de fome e para o suicídio.

O tráfico negreiro, nos seus 350 anos, realizou entre 35 e 36 mil viagens transatlânticas transportando, somente para o Brasil, 4.9 milhões de escravos africanos (GOMES,2019). De acordo com o Slavevoyage.org, os modelos de navios negreiros mais utilizados entre 1817 e 1840 eram: o Brigue (navio à vela com dois mastros com velas quadradas e transversais), o Bergantim (navio estilo galé com dois mastros e velas redondas) e a Escuna (veleiro com vela de popa e de proa com dois mastros). Para Jaime Rodrigues,

Embora os bergantins carregassem menos escravos devido as suas limitações espaciais, eles eram mais velozes – ou mais veleiros, como se dizia no linguajar marítimo do século XIX. Essa característica poderia ser um dos fatores que levava as embarcações de dois mastros (brigues, escunas, patachos, sumacas e bergantins) a estarem entre os tipos prediletos para o comércio negreiro no período da repressão mais intensa promovida pelos ingleses. (RODRIGUES, 2008, p. 173).

Com o passar dos anos, novas técnicas de higiene foram sendo aplicadas para deixar o ambiente do navio negreiro mais respirável, diminuindo assim a mortalidade do “estoque” de africanos escravizados. Por outro lado, capitães passaram a ganhar comissões consideráveis que aumentavam gradativamente, dependendo da média de mortalidade a bordo, o que fazia com que um capitão ganhasse, no século XVIII, entre R$ 500 mil e 750 mil (moeda atual) por viagem (GOMES, 2019). Por esse motivo, os capitães passaram a exigir que os tripulantes redobrassem os cuidados com a “mercadoria”, especificando horários para banhos e aplicação de remédios nas feridas dos escravos. Nas palavras de Laurentino Gomes (2019),

[...] O capitão, o primeiro a ser contratado pelo dono da embarcação ou elo organizador da viagem. Era também o último a ser dispensado, depois de todas as etapas da jornada. Cabia a ele recrutar o restante da tripulação, providenciar todos os recursos necessários à viagem, organizar a compra dos escravos na costa da África e, muitas vezes, também os leilões de venda na chegada ao Brasil. Era a autoridade máxima a bordo, com poder de vida e morte sobre todos os demais tripulantes e os cativos. (GOMES, 2019, p, 278).

Vale ressaltar que o tráfico negreiro foi uma das atividades mais lucrativas, durante três séculos e meio. Embora lucrativo, o tráfico se estabeleceu com muita violência e com a exploração de vidas humanas, sendo o navio negreiro uma ferramenta primordial para o sucesso das empreitadas transatlânticas. Não por acaso, os comerciantes de escravos faziam investimentos vultosos para comprar novos navios ou realizar modificações nos já existentes para aproveitar e tirar o máximo das embarcações e aumentar a sua vida útil.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A escravidão, oficialmente, foi abolida em 1.888, pela Princesa Isabel. Isso é fato histórico amplamente divulgado. O fenômeno escravocrata é hoje um dos temas mais pesquisados, gerando milhares e milhares de artigos dos mais diferentes vieses. Com o crescente interesse de pesquisadores e com o avanço da tecnologia, muitos fatos, relativamente novos, estão sendo colocada a mesa, gerando novas teorias e novos debates.

Durante os três séculos e meio da escravidão muitos escravos conseguiram a tão sonhada alforria, que eram compradas pelos escravos ou doadas pelos seus senhores. Porém, tanto uma quanto a outra, eram, em sua grande maioria, condicionadas. Todavia, com a institucionalização da alforria no Brasil - diferente, por exemplo, dos EUA - foi possível a formação de uma classe de escravos libertos que, mesmo sem nenhum tipo de reconhecimento ou beneficio da sociedade, desempenhou importante papel social, econômico e cultural ajudando assim a manter e preservar os costumes e tradições das etnias africanas, escravizadas no Brasil.

Ao longo do artigo, nos deparamos com o martírio, o extermínio e o etnocídio dos nossos indígenas com a chegada dos primeiros colonizadores; debruçamo-nos em citações dramáticas e assustadoras do dia a dia dos escravos aprisionados nos porões dos navios negreiros; identificamos as agruras que levaram muitos desses escravos a cometerem suicídios, por não suportarem tamanha dor e sofrimento; caracterizamos as insalubridades dos navios negreiros, as doenças e o fim trágico de corpos sendo devorados pelos tubarões; reproduzimos as feridas abertas com o chicote, dos que conseguiram sobreviver as grandes travessias do Atlântico. Ao final deste artigo - muito resumido, confesso - a única certeza que temos é que é preciso sempre lembrar para não nos esquecermos dessa grande chaga da humanidade, a escravidão.

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