A incrível trajetória da jornalista pioneira que, há 130 anos, deu a volta ao mundo em 72 dias
Viagem feita há 130 anos consagrou Nellie Bly como pioneira do jornalismo investigativo e a transformou em celebridade mundial
A jornalista americana Nellie Bly tinha 25
anos e uma carreira de sucesso quando, em 1889, embarcou em uma viagem ao redor
do mundo com o desafio de completar o roteiro mais rápido que Phileas Fogg,
personagem do livro A Volta ao Mundo em 80 Dias, do escritor francês Júlio
Verne, que havia sido publicado poucos anos antes, em 1873.
Quando a ideia da viagem surgiu, seu editor
no New York World, um dos maiores jornais dos Estados Unidos na época, queria
enviar um homem. Ele duvidava que uma mulher pudesse viajar ao redor do mundo
sozinha.
"Muito bem. Mande um homem e eu começarei (a viagem) no mesmo dia por outro jornal e vou derrotá-lo", respondeu Bly. Ela acabou convencendo o chefe de que poderia cumprir a missão.
Nellie Bly com a mala de mão que levou em sua viagem de volta ao mundo; "Mande um homem e eu começarei (a viagem) no mesmo dia por outro jornal e vou derrotá-lo", disse Bly a seu editor |
Na tarde de 25 de janeiro de 1890, depois de percorrer mais de 40 mil quilômetros pela Europa, África, Ásia e América viajando de navio a vapor, barco, trem, riquixá, cavalo e até em um burro, Bly desembarcou na estação de trem de Jersey City diante de milhares de fãs que aguardavam sua chegada.
Ela havia concluído o percurso em 72 dias,
seis horas, 11 minutos e 14 segundos, superando não apenas o personagem de
Verne, mas também sua própria meta, que era de completar o roteiro em 75 dias,
e estabelecendo o recorde mundial de circunavegação do globo.
A viagem, há 130 anos, consagrou Bly como
pioneira do jornalismo investigativo e a transformou em celebridade mundial.
"Essa era uma época em que editores não
deixavam suas jornalistas mulheres irem nem mesmo ao outro lado da cidade
desacompanhadas, muito menos ao redor do mundo", diz à BBC News Brasil o
escritor Matthew Goodman, autor de Eighty Days: Nellie Bly and Elizabeth
Bisland's History-Making Race Around the World ("Oitenta Dias: A
Histórica Corrida de Nellie Bly e Elizabeth Bisland ao Redor do Mundo", em
tradução livre).
"A ideia de que uma mulher sozinha, falando somente inglês, fosse dar a volta ao mundo, e mais rápido do que qualquer outra pessoa já havia feito, era inédita. Ela foi extremamente ousada ao tentar isso", ressalta Goodman.
Antes mesmo da viagem, Bly já era uma
jornalista reconhecida nacionalmente por sua coragem e determinação e por
reportagens que costumavam expor injustiças sociais.
Nascida Elizabeth Jane Cochran, em 1864, em
uma área que hoje fica nos arredores de Pittsburgh, no Estado da Pensilvânia,
ela começou sua carreira aos 21 anos de idade, quando escreveu uma carta ao
jornal Pittsburgh Dispatch em protesto contra um artigo que declarava que
mulheres serviam para ter filhos e cuidar da casa. O editor, impressionado com
sua resposta, lhe ofereceu uma vaga como jornalista.
Como era costume entre mulheres na época, ela
passou a assinar usando um pseudônimo: Nellie Bly. Logo começou a chamar
atenção por reportagens que fugiam dos temas considerados
"femininos", como moda e culinária. Ela investigou as condições de
trabalho para mulheres em fábricas e passou seis meses como correspondente no
México — de onde saiu após ser ameaçada por ter criticado a prisão de um
jornalista local.
Aos 23 anos, mudou-se para Nova York.
"Ela queria entrar no mundo jornalístico de Nova York, que era dominado
por homens. Queria publicar histórias de primeira página. Estava disposta a
provar que as mulheres eram jornalistas tão capazes quanto os homens",
ressalta Goodman.
O navio Augusta Victoria, no qual Nellie Bly partiu rumo à Inglaterra em 1889, na primeira etapa de sua viagem ao redor do mundo
Depois de alguns meses sem emprego, Bly ganhou a oportunidade de fazer uma reportagem para o New York World, jornal que pertencia ao renomado editor Joseph Pulitzer. Sua missão era fingir ser uma paciente para investigar as condições do manicômio feminino de Blackwell's Island, ilha em Nova York que hoje é chamada de Roosevelt Island.
Em setembro de 1887, depois de praticar em
frente ao espelho um "olhar fixo e distante", Bly se hospedou em uma
pensão para mulheres sob o nome de Nellie Brown. Logo, começou a agir de forma
incoerente, assustando as outras moradoras. Levou poucos dias para que a
polícia fosse chamada. Diante de um juiz, ela disse que seu nome era na verdade
Nellie Moreno e que vinha de Cuba e fingiu ter amnésia. O juiz determinou que
fosse internada.
Durante dez dias, Bly testemunhou as
condições brutais e os abusos físicos e emocionais a que as mulheres eram
submetidas. Com temperaturas abaixo de zero, eram obrigadas a tomar banho
gelado, e dezenas tinham de compartilhar a mesma toalha. A comida era podre, o
local imundo, e era comum pacientes serem amarradas e espancadas pelas
enfermeiras e drogadas com morfina.
Segundo Bly, várias das mulheres não eram
doentes mentais. Muitas vinham de famílias pobres ou eram imigrantes com
conhecimento limitado de inglês. Sem entender o que diziam, enfermeiras e
médicos achavam que estavam falando coisas sem sentido.
"Eu sempre fiz questão de dizer aos
médicos que eu era sã e pedir para ser liberada. Mas quanto mais eu me
empenhava para assegurá-los de minha sanidade, mais eles duvidavam",
relatou Bly. "O hospício de Blackwell's Island é uma ratoeira humana. É
fácil entrar, mas, uma vez lá, é impossível sair."
Ao fim de dez dias, ela foi retirada do
manicômio por advogados do jornal. Sua série de reportagens, publicada a partir
de 9 de outubro de 1887, chocou o público e gerou uma investigação oficial, que
resultou em reformas e aporte extra de verbas para melhorar as condições em
Blackwell's Island.
A reportagem resultou no livro Dez Dias
em um Hospício e tornou Bly uma das jornalistas mais famosas dos Estados
Unidos na época. Ela ganhou sua própria coluna e se consagrou em histórias do
tipo. Em uma delas, conseguiu ser presa para investigar as condições na cadeia.
Em outra, tentou comprar um bebê recém-nascido para expor o tráfico ilegal de
crianças.
Seu sucesso inspirou os jornais concorrentes
a começar a usar repórteres mulheres em matérias semelhantes. "Todos (os
concorrentes) queriam encontrar sua própria versão de Nellie Bly. Isso é parte
da influência que ela teve. Ela começou a abrir espaço no jornalismo para
outras mulheres", observa Goodman.
Mas nenhum de seus feitos anteriores se
comparava ao desafio de uma viagem ao redor do mundo. Bly partiu na manhã de 14
de novembro de 1889. Contrariando aqueles que diziam que uma mulher não conseguiria
viajar sem várias malas, carregava apenas uma pequena sacola de mão, na qual
levava um vestido, um corpete, roupas íntimas e lenços, um par de chinelos,
artigos de higiene, agulha e linha, cantil, copo, canetas, tinta e papel.
A primeira etapa do roteiro foi feita a bordo
do navio Augusta Victoria, que partiu de Hoboken (cidade no Estado de Nova
Jersey que fica em frente a Nova York, do outro lado do Rio Hudson) com destino
à Inglaterra. De lá, Bly seguiu para a França, onde foi recebida por Júlio
Verne em sua casa em Amiens. O escritor desejou boa sorte na empreitada.
Bly percorreu então a Itália e de lá foi para
Porto Said, no Egito. De Suez, seguiu pelo Mar Vermelho até Aden (no atual
Iêmen) e de lá para Colombo (atual Sri Lanka) e Cingapura. Quando chegou a Hong
Kong, no dia de Natal, teve uma surpresa: descobriu que sua viagem era, na
verdade, uma competição.
Sem que ela soubesse, no mesmo dia de sua
partida para Londres, a revista Cosmopolitan também havia enviado uma
jornalista, Elizabeth Bisland, com a missão de completar a volta ao mundo.
Bisland viajava na direção oposta, rumo ao Oeste, partindo de Nova York para
San Francisco e, de lá, embarcando em um navio rumo ao Japão.
A revelação foi feita pelo funcionário do
escritório da companhia de navegação, onde Bly foi marcar sua passagem para o
Japão. Segundo Goodman, o homem disse a Bly que achava que ela ia perder a
corrida. Quando ela respondeu que estava apenas correndo contra o tempo, ele
respondeu: "Tempo? Não acho que era este o nome dela." Bly pensou que
o funcionário estava louco, mas ele completou: "A outra mulher. Ela vai
ganhar. Ela partiu daqui há três dias."
Surpresa com a notícia de que tinha uma
concorrente, Bly seguiu viagem, e passou a véspera de Ano-Novo entre Hong Kong
e Yokohama. No Japão, embarcou no navio Oceanic rumo a San Francisco.
Apesar das dificuldades de comunicação na
época, e da demora até que os relatos de Bly durante a viagem chegassem ao
jornal, o New York World publicava atualizações diárias sobre a aventura, que
era acompanhada fielmente por um público cada vez maior.
O jornal deu enorme destaque à cobertura. Havia apostas para adivinhar a data em que Bly completaria a viagem e vários produtos com sua imagem estavam à venda. Um hotel, um trem e um cavalo de corridas foram batizados com seu nome. Até um jogo de tabuleiro foi criado em comemoração à viagem.
Quando Bly desembarcou em San Francisco, após
cruzar o oceano Pacífico, um trem fretado pelo New York World a aguardava para
cruzar o país e levá-la ao ponto de onde havia iniciado a viagem, em Nova
Jersey. A cada parada durante o trajeto, era recebida por multidões, com
discursos, banda de música e fogos de artifício. Ao chegar ao ponto final, em
Jersey City, e cruzar o rio Hudson em direção à sede do jornal, em Manhattan,
foi ovacionada por milhares de pessoas.
"Lembro de minha viagem cruzando o
continente como um emaranhado de felicitações, votos de felicidade, telegramas
de congratulações, frutas, flores, aplausos, vivas, apertos de mão",
escreveu Bly. "Dizem que nenhum homem ou mulher na América jamais recebeu
ovação como as que recebi em minha viagem atravessando o continente."
Apesar da vantagem inicial em relação a Bly,
Bisland perdeu uma conexão por navio e acabou completando sua viagem quatro
dias depois. Ao contrário de Bly, ela preferiu fugir da atenção do público, e
logo em seguida se mudou para a Inglaterra.
Graças à atenção gerada pela viagem de Bly, o
New York World ganhou muitos novos leitores e aumentou sua circulação.
Decepcionada por não ter recebido nenhuma recompensa ou aumento de salário, ela
pediu demissão e iniciou uma turnê de palestras sobre a aventura. Seus relatos
de viagem foram reunidos no livro Nellie Bly's Book: Around the World in
Seventy-Two Days ("O Livro de Nellie Bly: A Volta ao Mundo em 72
Dias").
Em 1895, Bly casou com o milionário Robert
Seaman, 42 anos mais velho que ela. A diferença de idade fez com que alguns
brincassem que se tratava de mais uma de suas reportagens investigativas. Mas
ela deixou o jornalismo e passou a comandar a fábrica do marido. Depois da
morte de Seaman, em 1904, Bly tornou-se uma importante líder industrial e
inventora, recebendo patentes por embalagens de leite e cestos de lixo.
Ela ainda voltaria ao jornalismo anos depois,
cobrindo inclusive o movimento sufragista e a Primeira Guerra Mundial. Bly
morreu de pneumonia em 1922, aos 57 anos de idade.
Neste ano, está prevista a inauguração de um
monumento em sua homenagem em Roosevelt Island, no local do manicômio em que
ela se infiltrou para sua reportagem.
Por BBC Brasil
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