Cultura: PoeMitos da Parnaíba (Elmar Carvalho)


 O mito é o nada que é tudo  (Fernando Pessoa) 

O conjunto de 27 PoeMitos da Parnaíba retrata figuras populares, pitorescas, excêntricas e jocosas da cidade, mas sempre no que elas tinham de mais comovente e de mais humano. Essas personagens entraram para a história porque fizeram parte da paisagem da velha urbe. Muitas ainda vivem no imaginário popular, quase como figuras lendárias, mitológicas. 

  
Situava-se entre o feio e o horrível 

mas se dizia BG: bonito e gostoso. 

Metido a conquistador de mulheres 

conseguia o inverso efeito: 

as mulheres – lebres assustadas – 

de Alain Delon fugiam. 

Se Alain Delon muito fosse 

Alain Delonge seria. 

Derocy, Ofélia da Parnaíba,

não era um orador oral:

era um orador boçal

em seus discursos bestialógicos,

ilógicos, escatológicos. Tirava

do sério o homem sério quando

disparava seus disparates.

 


Se bem pesado não dava

sequer meio-quilo. Pai de

Cotinha, mulher bonita e

namoradeira nos escuros

do velho Cine-Teatro Éden – paraíso

de estripulias estrambóticas e eróticas.

O pequenino Meio-Quilo, de lanterna em

punho, a roubar Cotinha dos braços

do namorado, era um filme

à parte.

Poeta. Espírita. Espírito

da carne e do osso, a roer

o osso duro do ofício de poetar.

Quixótico, exótico: misto de poeta

e de espírita. Via espíritos no

ar. Nunca estava sozinho:

quando a poesia lhe faltava

os espíritos surgiam e

se insurgiam contra a solidão.

Cavalheiro de fino trato:

tirava o chapéu para os

espíritos que só ele via.

Animal trípede da 

família dos primatas.

Animal não monstruoso:

animal mastruoso.

Pé de mesa mais famoso

da Parnaíba, Lobaia

só cavalgava cobaia,

em única experiência,

através da armadilha

das lâmpadas apagadas.

Vai bola com Parassi.

Parassi para. Parassi para

Moacir. Era o velho

Parnaíba de Parassi,

Irmãos & Futebol Clube.

Hoje é apenas Parnaíba Clube.

Mestre Ageu

mago das artes escultóricas,

novo rei Midas do antigo mito

a transformar em estátuas

troncos toscos de madeira

com os toques de suas mãos.

Mestre Ageu

Pigmalião dos mágicos toques

faz mais uma escultura:

ninguém se espantaria

se ela gesticulando

lhe desse “bom dia”.

Mestre Ageu

de arte tão exata

que lhe força fabricar

o seu cinzel de cortar.

Mestre Ageu

em sua agrura

agora chora ora e deplora

afagando/abraçando/agarrando

a escultura, sua cria/tura:

o compra/dor a veio buscar.

 Não o Dias da Silva,

mas o Long John da Parnaíba,

o terror da mulherada,

pé de cana e pé de mesa,

concorrente de jumento e garanhão.

Só pegava mulher novata,

desconhecedora da fama de seu

alopramento descomunal.

A cama se transformava

no altar do sacrifício da mundana,

segura a pulso como uma potra bravia.

Processado pela noiva descartada

após quarenta anos de noivado.

(A noiva não sabe a sina

de que terá escapado.)

Assim como há

o espírito de porco

o espírito de gato há.

Xigaaaau... Xigaaaaaau...

Não articulava palavras,

apenas miados e miados

e a semiótica linguagem

de seus gestos de gato.

Trazia a lembrança viva

de um passado morto e sepulto

dos Bailes Azuis e do

burburinho dos porcos d’água

e das meretrizes do cais.

Reinava na boate Rio-Chic

e desfilava pelo grande salão

cheio de espelhos e de sonhos

e de risadas esparsas

como num reino encantado.

A imagem de Jiboia morta

reproduzia-se pelos quatro

cantos do salão através das

pupilas perplexas dos espelhos.

(As velas do velório

 lágrimas de cera choravam,

enquanto as mulheres, entre soluços,

 rezavam contritas.)

 

Hosana nas alturas!

Hosana nas alturas

de sua vida sofrida

de pobre e alienada.

Interventora dos gabinetes

(cediam-lhe os pequenos tronos

de burocratas para rirem

o riso fácil e gratuito).

Cobradora de impostos e taxas

(davam-lhe ínfima moeda em

troca do riso rasgado).

Andava sempre com sua

roupa branca de marinheiro –

primeira e única almirante:

alma mirante

alma errante

      alma navegante.

Sempre de

branco como as nuvens

que alvejavam em sua

cabeça de nefelibata.

Um dia

ou melhor uma noite

Boa Ideia teve a ideia

de construir um telescópio

para sonhar/sondar aqueles pontinhos

cheios de pontinhas chamados estrelas.

Galileu Galilei da Parnaíba

construiu sua luneta

desvendou estrelas e planetas e cometas

e perscrutou os umbrais do infinito.

Autodidata da astronomia

com seu telescópio passeava

pelos “mares” da lua

dizendo coisa com coisa

que ninguém sabia.

Brincava de bambolê

com os anéis de Saturno.

Jogou bola de gude

com as luas de Júpiter.

Morfeu o levou para ser

centurião de galáxias. Mas

voltará não num rabo de foguete

mas na caudabundante flamejante -

mente reluzente do cometa de Halley. 

Que dizer do Rodrigão?

Que ele era um novo Atlas

a sustentar em suas costas

a esfera azul do sonho?

Não. Era um atlas de carne e osso

porque sua cara vista de perfil

era um mapa da América do Sul.

 

Passava com seu passo leve

– quase voo de pássaro –

com a suave elegância

de uma cabra montês.

Rápida cortava as

avenidas e as praças

até que a molecada gritava:

– Maria das Cabras!...

Maria subia a saia:

– Taqui o chifre da cabra!...

Os moleques com as cabeças

cheias de ideias e fantasias

em suas alcovas ou banheiros

se escondiam: Maria das Cabras

surgia como uma fada encantada

entre véus diáfanos que se

es~~~~~gar~~~~~ça~~~~~~vam.

Maluco, se dizia alta

autoridade do planalto.

Ficava fulo da vida quando

chamado de soldado ou de

Madame de Chaval.

Não andava: marchava

de farda e botas.

Davam-lhe plaquetas e selos

e pequenas chapas de metal:

eram as condecorações e os

distintivos com os quais desfilava

entre continências de

risos e zombarias.

Surdo, surdo como um surdo,

aprendeu com Bilac a ouvir estrelas.

E as ouvia nas lindas noites estreladas

de Parnaíba.

Em sua surdez de pau

ouvia o bater dos corações das pedras.

Ouvia o bangue-bangue dos colts

em suas leituras de faroeste.

Com sua morte silente

aprendeu a ouvir o silêncio

absoluto da morte.

– Eu sou um monumento

anatômico e biotônico

onde a lenda se mistura com a realidade;

onde o homem se confunde com o mito.

E neste instante, sinto-me

forte como um elefante!

– Cadê a tromba? – perguntou um gaiato.

– Está aqui – retrucou Paca/mão na braguilha.

Pacamão: pacamônicos folclores

de ditos repetidos pela boca

do povo – arma de repetição

deflagrando gargalhadas.

Enchia galões de gasolina

até a borda de cerveja

para beber e banhar.

Comprava defuntos frescos

para fazer o enterro.

O caixão seguia de carroça,

enquanto a banda tocava

por entre goles de aguardente.

Acendia charutos cubanos

com cédulas de cinco mil réis.

Dirigia carro importado dos EUA

vestido com roupa de estopa

de saco de açúcar.

Expedito Maciel,

Howard Hughes da Parnaíba,

milionário e excêntrico,

perdulário e esquizofrênico,

filho pródigo de si mesmo. 

Sua saia rodada

sua saia rodando

era uma festa de

cores e folhas e flores

nas festas de que gostava.

Das pontas estelares de seus dedos

saltavam saltitantes valsas

pelos tec-tec teclados do piano.

Hoje ela estendeu um arame

nas pontas da lua nova,

colocou uma estrela e toc-toc

toca berimbau.

Vulgo Mário Bola, tinha

a graça de um tatu bola.

Orfeu de novos carnavais

carregava o encantamento

dos sopros (marítimos) que

transformava em música em

sua gaita – caixa de mágico som.

Entre a música e a fofoca

uma piada de recheio.

Bernardo Carranca

com sua carranca de artesanato

artefato – mas não

arte de fato – de cantor/ator/à toa

atropela uma música

com seus gemidos e grunhidos e ganidos.

E canta: “De noite eu rolo

na cama...” E sai rolando, se enrolando

se contorcendo e se retorcendo pelo salão

por entre mesas e pelo chão

– bailarino de mola

sem molejo de cintura –

criador e criatura

de sua própria loucura. 

O “milionário” Paulo Afonso

coiceou com um seco não

o boêmio e compositor Zé Bispo,

quando este lhe foi dar

um filho como afilhado.

Bispo, numa música em que dizia

que o Deus do “milionário” era

o mesmo seu e que o ouro

dele não o levaria ao céu,

sua branda mágoa de protesto

nas placas de bronze do tempo lavrou.

O ouro de Paulo Afonso

como o orgulho e a soberba

pelo ralo da vida se foi.

A música de Zé Bispo

cantando na boca do povo

é folha verde/viva que a voragem

do vento do tempo não levou.

AristorRatos

AristocraRia de

ba(r)rão falido

de (es)conde de (ex)conde

de (vil)conde de (vis)condes

de barrão/barrado/borrado

conde falido = falo k ido

conde falado = falo alado mas depenado

conde falecido = falo de morto

conde falingus = falo da língua

– Maria Onça!

– Onça é a tua mãe,

filho de uma égua.

A cara feia de Maria

transformava-se na

carranca de uma onça.

Não de uma onça pintada,

não de uma onça rajada,

mas de uma onça

pobre, feia e desbotada.

E Maria Onça seguia

como um bicho acuado

por entre os apupos

da molecada.

E Maria Onça chorava

no meio da molecada.


Não morrerás,

meu quimérico e homérico cego.

Um mito não morre:

um mito se encanta e permanece.

Teus dois percursionistas

são dois anjos da guarda

de asas dissimuladas.

Um te abriga com a sombra

de seus olhos também sem luz.

O outro é tua estrela guia,

que te conduz em tua noite sem dia,

pelas trevas espessas de teus olhos,

como um Virgílio da nova mitologia.

Não morrerás,

não por seres Bento,

mas por teu talento.

A música escorre de teus dedos,

saltita sobre os teclados,

palpita e resfolega no fole,

cabriola no molejo moleque

do leque da sanfona,

evola-se pelos ares,

remexe as ondas dos mares,

sacoleja as folhas dos palmares,

se quebra e se requebra pelos bares

e remelexe no chamego e aconchego dos pares.

Não morrerás, cego Bento.

O professor Amstein,

com seu vasto bigode

e densa barba ruiva,

alto, forte, avermelhado,

chegou a Parnaíba montado

no árdego Pégaso da mistificação.

Assumiu emprego no

Ginásio Parnaibano e na Escola Normal.

Professor de desenho geométrico e matemática,

fazia suas métricas e matemágicas

em suas fantásticas e fantasiosas histórias.

Engenheiro e da Suíça, era um verdadeiro

canivete suíço: polivalente, pau para toda obra,

homem de sete ou mais instrumentos, substituía

qualquer dos professores faltosos.

Novo Barão de Munchausen

recheava suas aulas e recreios

com seus anedóticos e mirabolantes “causos”,

menino grande entre os demais meninos,

“barulhento, inconsequente e brincalhão”,

no dizer do ex-aluno Renato Castelo Branco.

Para sempre restou em sua mente a saudade

de Edelweiss, a divina e linda nívea flor dos Alpes.

No bar do Augusto

o passado era sempre presente,

e o futuro a Deus pertence.

No Recanto da Saudade 

de outra dimensão do espaço-tempo

o Dourado continua a vestir a fantasia

de a sua própria pessoa ser ou não ser

heterodoxos heterônimos pessoanos.

 Onde, agora, o Augusto?

Onde, agora, a vitrola, a música e o bar?

Como nos versos sublimes de Bandeira,

 ficaram de pé, suspensos no ar. . .

Encantados no destempo de um tempo

sem passado, sem futuro, sem presente.



Texto: Elmar Carvalho
Charges: Gervásio Castro
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